Dentista usa método de atendimento do paciente autista
O presente trabalho mostra o
atendimento do paciente autista de maneira mais lúdica, é uma adaptação feita
pela autora do programa Son Rise® ao atendimento tornando esse momento mais
prazeroso e inovador. É usada uma abordagem relacional, onde a relação entre as
pessoas é valorizada. As sessões de atendimento são preparadas para facilitar a
interação profissional-paciente e subsequente aprendizagem, que no caso é a realização
do tratamento odontológico. Dessa maneira minimiza--se o estresse durante as
sessões convencionais de odontologia para esse paciente, diminuindo também o
número de intervenções com anestesia geral.
INTRODUÇÃO
A odontologia para pacientes com necessidades
especiais tem um grande desafio no que diz respeito ao atendimento ambulatorial
do paciente autista em razão da dificuldade de relacionamento social que este
apresenta. Psicólogos e especialistas em desenvolvimento infantil têm apontado
há décadas que crianças que possuem desenvolvimento típico aprendem melhor
através de experiências interativas e emocionalmente prazerosas com outras pessoas.
Nestas interações, a criança é um participante ativo ao invés de um recipiente
passivo de informação. Nos últimos dez anos, os pesquisadores têm percebido que
o mesmo vale para crianças com autismo e dificuldades similares. As novas
perspectivas e pesquisas em relação ao autismo estão começando a perceber o que
o Programa Son Rise® já vem praticando há anos.
Este programa tem sido utilizado
internacionalmente por mais de 30 anos com crianças e adultos representantes de
todo o Espectro do Autismo e dos Transtornos Globais do Desenvolvimento. O
Programa Son Rise® é centrado na pessoa com autismo. Isto significa que o
tratamento parte do desenvolvimento inicial de uma profunda compreensão e
genuína apreciação da pessoa, de como ela se comporta, interage e se comunica,
assim como de seus interesses (4). O Programa Son Rise® descreve isto como “ir até
o mundo da pessoa com autismo”, e é isso que fazemos para
alcançar com êxito o tratamento
odontológico.
O autismo infantil é um transtorno
global do desenvolvimento caracterizado por um desenvolvimento anormal ou
alterado, manifestado antes dos três anos de idade, e apresentando uma perturbação
característica do funcionamento em cada um dos três domínios seguintes:
interações sociais, comunicação, comportamento focalizado e repetitivo. Além
disso, o transtorno se acompanha comumente de numerosas outras manifestações,
por exemplo: fobias, perturbações de sono ou da alimentação, hetero ou
autoagressividade, hand flapping (agitar as mãos), rodopiar etc. (6).
O objetivo desse trabalho é apresentar
a técnica usada pela autora para facilitar o tratamento odontológico,
minimizando o estresse e os custos com o procedimento, favorecendo a inclusão social
e treinamento para que mais profissionais usem a técnica, tornando-se aptos a
realizar o atendimento em nível ambulatorial.
RELATO DE CASO
Paciente do gênero masculino, 14
anos, autista, apresentou-se na clínica de odontologia do Projeto Social “Vila
Maria – Um Caso de Amor”, da Escola de Samba Unidos de Vila Maria, acompanhado
da mãe à procura de tratamento. Após realização de uma anamnese criteriosa foi
constatado ser um autista de baixo funcionamento, sem verbalização, riso
inapropriado, pouco contato visual, resistência à mudança de rotinas, sem
acompanhamento psicológico, terapêutico ou escolar, que nunca havia ido ao
dentista e apresentava dificuldade de aceitar a higienização bucal feita pela
mãe. Foi relatada sua preferência por carros de brinquedo, e o que realmente mais
apreciava era comer. Não gostava de ser contrariado e se sentir preso, nessa
situação poderia desencadear uma crise. Essa anamnese foi realizada só com a
mãe sem a presença do paciente porque o tempo da entrevista poderia deixá-lo
nervoso. Após a entrevista iniciou-se o planejamento das sessões de
condicionamento lúdico para o tratamento odontológico. Nosso vínculo seria conseguido
através dos carrinhos e esse era o primeiro caminho.
Primeira
Sessão
Na 1ª sessão de condicionamento lúdico
iniciei com abordagem adaptando o método Son Rise® à odontologia, fui ao
encontro do paciente, que estava sentado na sala de espera realizando
movimentos estereotipados com o tronco para frente e para trás, sem notar minha
presença. Abortei o uso do jaleco branco e nas mãos levava um carrinho de
plástico. Não falei nada, apenas passava na frente dele com o carro entre os
dedos. Sentei ao seu lado e aos poucos fui empurrando o carrinho sobre sua
perna, imediatamente ele pegou. Comemorei com aplausos e disse: “muito bem!”,
como indica o Programa Son Rise®. Dessa forma estava sendo motivado a interagir
e a intenção era “entrar no mundo da pessoa com autismo”. Aos poucos foi
aceitando que manipulasse o carrinho sobre suas pernas. Mas precisava mais,
teria que entrar ao consultório e era um ambiente novo, desconhecido, cheio de
estímulos visuais que podem sobrecarregá-los e serem competitivos ao
condicionamento, além de odores que poderiam desencadear crises nesse paciente.
Devemos simplificar o ambiente de trabalho (4). Na cabeça, fiz a opção de usar
uma tiara com 2 borboletas presas por longas molas que se mexiam num simples
toque, o retorno com essa ação era buscar o contato visual, uma das mais
difíceis maneiras de relacionamento do paciente autista. Associei o uso da
tiara à música “Borboletinha” das cantigas infantis, em tom baixo e buscando o
contato visual. Aos poucos estendi as mãos ao paciente e o conduzi ao
consultório. Mais uma vez deu tudo certo e ele me seguiu. Comemoramos
novamente: “Muito bem! Formidável!”, e mais aplausos. O Programa Son Rise® é
lúdico. A ênfase está na diversão. As atividades são adaptadas para serem
motivadoras e apropriadas ao paciente
mesmo que ele seja um adulto. Uma vez que a pessoa com autismo esteja motivada para
interagir com o profissional, este poderá criar situações de aprendizagem – e
no nosso caso é conhecer, entender e aceitar o tratamento odontológico. O
paciente tem que ter segurança no profissional, confiar em suas palavras e
gestos, e o profissional não deve nunca quebrar esse vínculo, respeito e
confiança. Entramos no consultório e sentamos sobre um tapete de EVA colocado
no chão, onde alguns carrinhos nos esperavam para prosseguir o condicionamento.
Falo em prosseguir porque o mesmo já foi iniciado no 1º contato, ainda na
recepção, onde detalhes não podem ser esquecidos, já que para esses pacientes
não são detalhes. Na altura de nossos olhos estava fixo na parede um espelho de
0,50 x 1,00 m, para tentarmos de várias maneiras o contato visual. Alguns pacientes
autistas buscam o contato visual através da imagem refletida no espelho e
devemos ficar atentos a isso e comemorar imediatamente quando esse contato for
alcançado, motivando para que ele seja repetido. Sempre que comemoramos a
habilidade adquirida estamos fortalecendo para que ela se repita. Quando um
comportamento é fortalecido é mais provável que aconteça no futuro (7) .
Podemos comemorar com aplausos, bolinhas de sabão e várias tentativas até
encontrar o que realmente motivaessa pessoa. Buscamos o contato visual porque
será o melhor caminho de comunicação para o paciente perceber que você existe e
aceitar você para seu mundo. Não podemos ter medo de ousar, confiar sempre,
estudar a técnica e aplicá-la com amor. Nessa sessão, conseguimos o contato
visual por três vezes, além disso o paciente entrou espontaneamente ao
consultório, observou tudo, sentiu alguns objetos com as mãos e aceitou o
contato das minhas mãos – que, nesse momento, já estavam com as luvas.
Segunda Sessão
Na 2ª sessão de condicionamento lúdico,
o paciente chegou e imediatamente entrou ao consultório procurando o carrinho
usado na sessão anterior. Meu planejamento era que ele sentasse na cadeira
odontológica, então prendi o carrinho no refletor com fita crepe e deixei a luz
acesa para chamar a sua atenção. Ótimo, ele encontrou o carrinho e sentou na
cadeira. Bati palmas, comemorei e, é claro, dei o carrinho em suas mãos. Nesse
momento consegui mais um contato visual e percebi que nosso vínculo estava
ficando mais forte. Aproveitei o momento para apresentar a seringa tríplice
lançando um pouco de ar no carrinho e depois na perna do paciente, subindo a
caminho da boca. Nesse momento gosto de fazer uso das músicas infantis,
brincando, cantando e apresentando os instrumentos do consultório. É importante
observar cada reação de nosso paciente, apresentar verbalmente cada ação para
não ser uma surpresa e fazer de maneira calma sem assustar nem causar estresse.
Podemos usar figuras para apresentação dos instrumentos do consultório e depois
mostrar o objeto propriamente dito. Parece que dessa forma eles reagem
melhor a novidades, essas figuras devem
ser simples e exemplificar realmente o objeto de maneira clara – como a
fotografia de mãos com luvas, mostrando as mãos com as luvas para que ele possa
sentir sua textura. Se a opção for atender pacientes autistas não pense que
tudo isso “são detalhes”. Ótimo, aceitou a tríplice, as luvas e a manipulação
da face, com auxílio de fantoches de dedo e todo apoio lúdico conseguimos
acesso à cavidade bucal, e a higiene oral com escova e pasta foi realizada.
Nunca se esquecer de recompensar: muito bom! Bolinhas de sabão. Isso é o que
afirma o Programa Son Rise®. Para essa
sessão já estava ótimo.
Terceira
Sessão
Na 3ª sessão ele entrou muito
tranquilamente e sentou na cadeira, arrancou o carrinho do refletor e começou a
gritar alguma coisa que não entendi. De repente o compressor ligou e foi um desastre,
uma gritaria só. Ele batia a mão na cabeça e movimentava o tronco para frente e
para trás. Pedi que desligassem o compressor mas já era tarde, encerramos a
sessão.
Quarta Sessão
A 4ª sessão foi marcada com intervalo
de uma semana para diminuir o estresse anterior. Estava muito ansiosa ao
recebê-lo, mas foi tudo bem: ele entrou, sentou e arrancou o carrinho do
refletor.
Desta vez o compressor já estava
desligado! Iniciamos com profilaxia com uso da baixa-rotação, 1º no carrinho,
depois na mão, no rosto e finalmente na boca. Foi ótimo, consegui a profilaxia
de todo arco superior e deu para terminar o exame clínico. Conforme fazia a
profilaxia, ia mexendo a cabeça para que as borboletinhas balançassem e foi
ótimo, consegui por várias vezes o contato visual e percebi que já tínhamos um
vínculo. Sessão terminada para não estressar o paciente. Nesse momento sempre
pego o brinquedo e guardo afirmando que irá encontrá-lo na próxima sessão e
sempre dá certo no retorno.
Quinta Sessão
A 5ª sessão foi a mais tranquila de
todas: o paciente entrou, sentou, arrancou o carrinho do refletor e ficou com a
boca aberta. ÓTIMO! Terminei a profilaxia e marcamos retorno bimestral para controle
e prevenção, porque o paciente não apresentava cáries.
CONCLUSÃO
Para conseguir o tratamento
odontológico do paciente autista em ambulatório sem uso das faixas de
contenção, é preciso dedicação do profissional, estudo da técnica proposta com
uso de métodos como Son Rise, compreensão das necessidades e limitações dos
indivíduos, acreditar que é possível, paciência, tentar várias vezes cada
procedimento e ter muito amor no que se faz.
Referências bibliográficas
1. Baron-Cohen et AL. Psychological
markers in the detection of autism in infancy in a large population. British
Journal of Psychiatry, n.168, p.158-163, 1996.
2. Frith,U. Autism and Asperger
Syndrome .Cambridge University Press,
1991.
3. Gauderer, E. Christian. Autismo. São
Paulo: Atheneu; 1993.
4. Hogan. Autism Treatment Center of
America. Home of the Son-Rise Program®. Modelo de desenvolvimento do Programa
Son-Rise®, tradução: Barreto,AD e Inspirados pelo autismo, 2007.
5. Katz, CRT, et al. Abordagem
psicológica do paciente autista durante o atendimento odontológico. Odontologia
Clín.Cientif. Recife, 8 (2):115- 121, a br/jun.,2009
6. Moore, ST. Síndrome de Asperger e a
escola fundamental: soluções práticas para dificuldades acadêmicas e sociais.
São Paulo: Associação Mais 1,2005.
7. Zink,AG et al. Atendimento
odontológico do paciente autista – Relato de caso. Revista ABO Nacional –
vol.16, nº5, 313-316, out/ Nov.2008.
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