domingo, 17 de abril de 2011

Mente de um Autista - Daniel


(Tradução de “Daniel’s Autism Insights Page” – Mônica Accioly)


Oi, meu nome é Daniel e eu tenho um dístúrbio raro, conhecido como autismo de alto desempenho. Eu demorei a falar quando criança. Na verdade, eu tinha quase sete anos quando falei pela primeira vez. Embora eu entendesse relativamente bem o que as pessoas falavam, não conseguia fazer os mesmos sons. Além disso, minha audição era tão sensível, que até o som da minha própria voz feria meus ouvidos. Por isto eu relutava tanto em aprender a falar. Depois que eu falei pela primeira vez, minha fala, ainda que desajeitada a princípio, teve uma melhora constante embora vagarosa.. E nada fácil.

No entanto, essa estava longe de ser a única forma pela qual o distúrbio me afetava. Como eu não conseguia interagir com as outras pessoas, nem mesmo no nível mais básico, eu era incapaz de me identificar com eles. Em resumo, eu não construía vínculos. Eu achava o rosto humano muito complexo, desagradável - até doloroso - de se olhar diretamente. Então eu evitava fazê-lo.

Logo descobri que o mundo fora da minha bolha era caótico, confuso, mudava sempre. Minha mente rígida não conseguia aceitar um mundo assim. Desta necessidade de ordem e rotina nasceram minhas compulsões, meus rituais. 

Vivi num contínuo torpor até os dez anos de idade. Mesmo quando quebrei o pulso aos seis anos, minha mão azulada me parecia estranha, mas não doía. Eu ficava freqüentemente ávido pela sensação do toque. Eu tinha que fazer alguma coisa para satisfazer esta necessidade. Até mesmo esfregar as mãos no tronco de uma árvore me aliviava. 

Permaneci sem diagnóstico pela maior parte da minha vida. Meu diagnóstico era retardo e muita preguiça para falar. Minha mãe ficou agradecida por eu não ter um tumor nas cordas vocais. Sem saber da verdade até a idade adulta, meu corpo tornou-se para mim um eterno mistério.

Sem saber que o distúrbio tinha um nome ou que outras pessoas possuíam essas enigmáticas e confusas características, eu me via como um monstro, incapaz de falar a alguém dos meus sofrimentos. Como eu poderia explicara a alguém que o ruído de um grupo de pessoas poderia causar tamanha confusão nos meus sentidos, que eu não conseguia distingüir um estímulo do outro ? Ou como isto poderia, ainda que temporariamente, deixar-me num estado de estupor ?

Muito freqüentemente eu me via em situações sociais, lugares cheios de pessoas conversando inocentemente e, eu, totalmente despreparado para receber um ataque de ruídos indecifráveis em todos os meus sentidos. Como não podia simplesmente ignorá-los, eu me forçava a ouvi-los e tentava compreender todas as conversas do ambiente. Não causa surpresa que, sem um protetor de ouvidos, todo o meu sistema nervoso fosse rapidamente esmagado, deixando-me incapaz de funcionar.

Em junho de 1995, depois de meses de avaliações e testagens, recebi o diagnóstico. Pesquisei na internet. As características pareciam-se tanto comigo, especialmente quando criança que, francamente, me senti invadido. Apesar disso, tudo fez sentido e fiquei aliviado. Meu distúrbio tinha um nome e uma causa biológica. Eu me formei com louvor em Administração naquele mesmo mês, na Universidade de Arkansas 
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Sobrecarga de sensações


Meu pai me apelidou de “alemão” em homenagem a minha avó que era descendente de alemães. 
Na minha época de pré-escola, eu não era estimulado a brincar com as outras crianças. Por causa disso eu realmente não percebi que havia algo de diferente em mim além da minha inaptidão para falar. Pensava que todas as crianças da minha idade eram iguais a mim e que também viviam num mundo interno, particular. Eu pouco me interessava pelo mundo lá fora, mas sentia-me compelido a observá-lo. Não me importava se as outras pessoas falavam umas com as outras. Não me sentia atraído pelas pessoas a minha volta, então eu não tinha interesse em tentar falar. Apontar para as coisas servia muito bem às minhas necessidades. Como a maioria das crianças autistas, eu tinha dificuldade em estabelecer vínculos, inclusive na minha família biológica. E não tinha nenhum desejo de deixar a segurança do meu mundo particular.

Minha falta de interesse e envolvimento com o mundo externo, não protegia minha mente da avalanche de informações indesejáveis que continuamente agrediam meus sentidos. Era como uma tortura mental e eu começava a me sentir mentalmente confuso e vagaroso. Minha cabeça ficava nublada e eu não podia pensar. Minha visão borrava e a fala das pessoas ao meu redor tornava-se incompreensível . Meu corpo todo zumbia. O ligeiro tremor que sempre me atormentou, piorava. Minhas mãos pareciam separarem-se do meu corpo, como se fossem objetos estranhos. Eu ficava paralisado. Incapaz de compreender meus próprios movimentos a menos que pudesse vê-los. Não poderia dizer onde começava minha mão e onde terminava a mesa, ou qual o formato da mesa, ou se era áspera ou lisa. Eu me sentia num mundo de desenho animado. Na verdade, muitas vezes eu sentia ter mais em comum com os objetos a minha volta do que com as outras pessoas. Sentia-me sem vida, atônito, e era difícil “voltar”. 

Nestes momentos sentia-me compelido a fazer certos movimentos repetitivos. De qualquer modo eu tinha uma constante fascinação por objetos, particularmente pauzinhos, e se houvessem alguns em torno, eu começaria a bater um no outro. Se não, eu usaria minhas mãos, abanando-as ritmicamente , buscando um ritmo interno. Meu comportamento confundia tanto a mim quanto àqueles ao meu redor. Que estranhos impulsos eu tinha, impulsos para os quais não havia explicação. Mais tarde aprendi que este comportamento é chamado de “auto-estimulação”. Talvez um termo mais apropriado fosse “modulação sensorial”. 

A auto-estimulação trazia alívio. Permitia que eu intencionalmente focalizasse um objeto da minha preferência. O barulho na minha cabeça aquietava, a nuvem clareava. Os objetos se tornavam novamente reais. A fala era mais uma vez compreensível. Meu corpo relaxava e o nível da minha ansiedade diminuía. Minhas mãos eram parte de mim outra vez. Meu corpo estava completo novamente, e era hora de checar a geladeira para comer alguma coisa.
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Corte de cabelo


Fiquei traumatizado por muitas das interações com a minha família , incluindo o corte de cabelo. Meu pai gostava de cabelo curto. Eu não. Não me lembro do meu primeiro corte, mas lembro-me em particular de um, quando eu tinha cinco anos. 

Era um domingo de sol, à tarde. Glen entrou em casa, arqueou suas sobrancelhas, empertigou-se e, acenando para mim e Luke, disse : “ Todas as crianças no carro. Vamos ao barbeiro”.

Meu coração veio até a boca e eu fugi para a cozinha. Não queria cortar o cabelo, nem agora, nem nunca! Por alguma razão, meu pai não parecia compreender que cortar o meu cabelo era me agredir. Meu cabelo pertencia apenas a mim e a mais ninguém. Perdê-lo significava perder parte de mim. Além disso, eu queria que tudo permanecesse sempre da mesma forma e meu pai não tinha o direito de forçar-me a mudar, especialmente de um modo tão selvagem.

Glen veio em minha direção enfurecido e, levantando a mão, disse : “Menino, faça o que eu digo”. Frente a esta alternativa, fui para o carro. Eu não tinha medo da dor física, mas de ser subjugado, de não estar em controle do ambiente. Era isso que me estressava. Como meu corpo estava em permanente torpor, eu não sentia nada nem mesmo quando apanhava. Sentia apenas uma vaga sensação de pressão no meu traseiro. Entretanto, eu tinha uma compulsão de estar sempre no controle.

Quando entramos na barbearia, que brilhava com tantas luzes, o senhor Stover olhou em nossa direção. Um aroma de creme de barbear e colônia enchia o ambiente. O sr. Stover era o barbeiro mais popular da nossa cidade de 3000 habitantes. Ele era tão simpático quanto Papai Noel, e não podia ser mais respeitável. Conversava sobre qualquer assunto.

Um antigo cliente estava sentado na cadeira. Enquanto ele falava sem parar, o sr. Stover praticamente o escalpelou com sua tesoura maléfica. O cliente desceu da cadeira e pagou pelo corte de cabelo com um sorriso nos lábios. Eu fiquei chocado com este comportamento tão estranho.
Meu pai insistiu que eu fosse o próximo. Estremecendo, subi relutantemente na cadeira. “Ele quer um corte militar hoje” disse Glen, sorrindo ironicamente.

Instintivamente olhei para ele e me afastei um pouco. Não, eu não queria! Eu não queria que roubassem nem o meu cabelo, nem nenhuma outra parte do meu corpo. Eu o queria inteiro e ninguém tinha o direito de levar uma parte. Quando vi o metal reluzente da cadeira, me encolhi.

O sr. Stover olhou para mim enquanto limpava as tesouras e, sorrindo com um brilho provocativo no olhar, perguntou : “ Você já tem uma namorada?” Logo perdi a noção das coisas e percebi o que ia acontecer. Esta invasão inconcebível do meu ser não podia ser real, eu precisava escapar. Então fechei meus olhos para não testemunhar o acontecimento e me concentrei no meu lugar predileto. Minha mente fez com que a barbearia desaparecesse e minha floresta surgisse em seu lugar. Sorri intimamente a esta visão e relaxei.

O sr. Stover riu e deu uns tapinhas nas minhas costas. “Eu acho que está na hora de você arranjar uma namorada”. O seu toque e o comentário trouxeram-me de volta à realidade. Eu estava para perder uma parte do meu corpo, uma parte de mim. A tesoura começou a fazer seu trabalho sujo. Eu me encolhi sob as mãos suaves do barbeiro. O som cortante irritava os meus ouvidos. Eu queria chorar, mas as lágrimas não vinham.

Finalmente, olhei no terrível espelho. A criança que me encarava havia sido tosquiada, restara apenas um fio de cabelo na testa. Não podia acreditar ! Permaneci olhando até perceber a verdade : aquilo era a minha imagem. Desamparado, balancei a cabeça, fora traído pelas pessoas à minha volta. Mais do que nunca me convenci que no mundo externo, tão estranho para mim, havia apenas dor e sofrimento. Não se podia confiar nas pessoas deste mundo, desta sociedade. E me isolei ainda mais no meu mundo interior.

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Balanços


Um dia, naquele mesmo verão, minha mãe sugeriu a meu pai que comprasse balanços para a família. No dia seguinte, Glen voltou da cidade com eles na traseira do carro. Impaciente, esperei meu pai montar os balanços no quintal, mas não pude brincar porque estava na minha hora de dormir.
Como eu normalmente acordava durante a noite, aquela não foi diferente. Acordei e vi os balanços brilhando ao luar. Era como se um amigo me chamasse para brincar. Levantei devagarinho e fui na ponta dos pés até a porta da frente. Abri a porta com bastante cuidado e escapei para o meu novo parque. Era gostoso sentir o orvalho frio sob meus pés descalços. Sentei no assento de metal e agarrei as correntes. A medida que me balançava, comecei a experimentar uma rara unidade do meu corpo, mente e sentidos. Quase não percebia o ranger rítmico das correntes.
“O que você está fazendo?” perguntou a voz de minha mãe atrás de mim.
Arregalei os olhos. Fiquei surpreso ao encontrar a família toda olhando para mim.
“É, alemão, o barulho acordou todo mundo” falou Luke.
“Deve ter sido sonambulismo” disse Glen.
Senti-me totalmente desprotegido. Minha linguagem pobre me deixou incapaz de explicar. Mamãe pegou minha mão e me levou para dentro.
“Eu espero que ele não fique sonâmbulo de novo” reclamou Luke enquanto subia na cama dele.
Além de inquietação, havia outros motivos para minha insônia. Meus olhos eram sensíveis à luz, até mesmo à luz do luar. Eu me adaptei cobrindo-os com outro travesseiro. Mais tarde, usei uma toalha de cores escuras. Toda noite eu a dobrava bem, fazendo disto um completo ritual, e a colocava nos olhos. Só então adormecia. 
Minha mãe costurava colchas para a família na igreja local. No inverno, o peso delas exercia uma pressão confortável que me acalmava. Esta pressão me assegurava que o meu corpo estava intacto, uma sensação difícil de perceber devido a minha eterna sensação de torpor. No verão, sem o peso das cobertas, o sono fugia. Levei anos para compreender as necessidades peculiares do meu corpo.

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Regras



Mesmo tendo aprendido a falar, perdi o interesse pelo mundo lá fora. Ele continuava contendo caos, barulho e frustração. Era muito diferente do meu mundo interno, onde eu encontrava paz .Estes estranhos pareciam não compreender as minhas necessidades de criar minhas próprias regras. Estas regras envolviam fazer sempre uma certa coisa de uma mesma maneira, e isto incluía a seqüência das ações. Com a minha mente rígida, tipo computador, eu freqüentemente me tornava obsessivo e não era fácil mudar de um programa para outro.
Em outros momentos, eu perseverava num programa que continha um ciclo repetitivo. Nestes momentos, sentia uma compulsão a repetir a atividade de forma idêntica à anterior.
Algumas vezes, isto me satisfazia, outras não. Os riscos de dividir o meu mundo tão especial parecia grande. Eu não estava pronto para sair da minha “bolha” protetora. 

No meu isolamento, faltava-me expressão emocional. Recentemente, olhava algumas fotografias minhas quando criança. Com exceção de uma, eu tinha em todas elas uma expressão suave e sem emoção. Parecia uma alma penada, sem identidade própria. Numa determinada foto, eu estava sentado num touro de brinquedo. Meu pai havia me mandado sorrir. Eu achei aquela ordem muito estranha na época, e eu não podia obedecer com sinceridade. Entretanto, sabia o que aconteceria com o meu traseiro se eu ao menos não fingisse. Então dei um meio-sorriso. Como eu poderia sorrir realmente? Tais expressões de emoções não faziam parte de mim. 
Muitas das crianças autistas que encontro têm esta mesma aparência desorientada. Quando as observo, me pergunto se elas também estarão a procura de suas identidades. Fico imaginando se haverá alguém por elas, para guiá-las pelo caminho

Um comentário:

  1. Tenho uma sobrinha com síndrome de asperger, que se não me engano está dentro do espectro do autismo. Ela tem algumas semelhanças com a criança do texto, mas tem uma vida social mais ativa.. Os problemas são mais dela consigo mesma e com pessoas que não estão dentro de seu convívio rotineiro (família). Os blogs são muito importantes para troca de informações e auxilio de pessoas e famílias com pouco acesso a contatos diretos com pessoas que passam por situações semelhantes. Parabéns pelo blog!!

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